«A procissão continua, a gritaria terminou»
Assim começa a letra da música The Eternal de uma das bandas mais negras da história da música, os Joy Division. Esta música, O Eterno – ou de forma mais livre A Eternidade, aborda a forma como falamos daqueles que partiram, a forma como deles falamos bem, a forma como nos esquecemos deles e seguimos o nosso dia-a-dia. Sobre a forma como passam a habitar o jardim da eternidade.
Mas não são só aqueles que partem que deixamos morar no jardim da eternidade. Há também aqueles que escolhemos não ver.
Durante a gravação do documentário Sonita, a realizadora Rokhsareh Ghaem Maghami foi humanamente obrigada a desrespeitar o mandamento sagrado do bom documentarista: não deverás interferir naquilo que documentas. Este trabalho retracta a vida duma refugiada Afegã a viver em Teerão. Sonita tem um sonho: vir a tornar-se uma cantora de rap mundialmente famosa.
Menina-mulher, por um lado obrigada a enfrentar as agruras da vida e por outro presa a uma infância que lhe roubaram, Sonita faz, no caderno onde escreve as letras das suas músicas, colagens da sua foto sobre cenas recortadas de revistas de música. O seu fiel público são as outras crianças do centro de acolhimento onde vai à escola e onde, através da expressão dramática, aprende a enfrentar os pesadelos da sua infância num Afeganistão governado pelo regime taliban. No entretanto vai tentando, junto de estúdio após estúdio, gravar uma das suas canções.
Sonita vai apurando o ritmo, seguida pela equipa de filmagem, até ao dia em que a sua mãe a informa que vem do Afeganistão para a buscar. O motivo? Vai ser vendida para casamento por 9.000$. O mundo de Sonita foge-lhe de debaixo dos pés. Aprumada e firme, abraça estoicamente o seu destino: é a tradição social que assim o manda – explica à realizadora.
A vertigem de acontecimentos que se segue leva equipa do documentário à decisão de produzir o seu primeiro videoclipe. Interferindo directamente na história que deviam tão só documentar estes Homens tomam em mãos mudar o destino da jovem rapper. A rápida sucessão de imagens não deixa adivinhar o que se seguirá.
Estamos num tempo em que nos sentamos, como eu agora, em frente a um teclado e a um ecrã que nos filtra o mundo numa doce sucessão de imagens. A realidade chega-nos intermitente e com um fim sempre ao alcance do botão desligar. Sonita tomou em suas mãos escrever sobre os problemas que viveu por dentro, sem o filtro de um ecrã. Conta a realidade de milhares de raparigas que todos os anos são vendidas, por tradição, para casar com homens por vezes muito mais velhos. A dada altura conta que a sua mãe, quando obrigada a casar, tratava o seu marido por tio, tal era a diferença de idade.
A mesma mãe que agora vai vender Sonita por nove mil dólares. Nove mil dólares esses que vão servir para comprar uma noiva para o irmão.
Cabe-nos a todos, mesmo por detrás do nosso crivo de realidade, tomar acção. Por mais pequena que seja, tomar acção. Nem que seja partilhar o videoclipe de Sonita. Tomar acção.
Não podemos nunca é deixar que as Sonitas deste mundo vão morar para o jardim eterno da nossa memória.