Decorre a contagem dos votos dos emigrantes para a eleição da Assembleia da República. Depois de terem sido corridos, talvez, centenas de milhares de eleitores por via dum mecanismo informático dúbio, assistimos agora a uma anulação em barda de votos dos emigrantes tão só pela não conformidade com o procedimento estipulado na lei.
O que diz a lei para a eleição da assembleia da república, nomeadamente no seu artigo 79º-G?
5. O eleitor marca com uma cruz, no quadrado respetivo, a lista em que vota e dobra o boletim em quatro, introduzindo-o depois no envelope, de cor verde, que fecha.
6. O envelope de cor verde, devidamente fechado, é introduzido no envelope branco, juntamente com uma fotocópia do cartão de cidadão ou do bilhete de identidade, que o eleitor remete, igualmente fechado, antes do dia da eleição.
Ora, o procedimento é de facto claro. Mas aquando da minha breve passagem pelos bancos da faculdade de direito de Coimbra houve uma coisa que aprendi: o espírito da lei é sempre mais relevante que o seu estatuído, e tem primazia sobre o segundo. Sendo que a lei é omissa na sua intenção teremos que “subir” no edifício legal e perceber de onde vem esta tão complexa formalidade. É óbvio que o propósito de separar a cópia do documento de identificação do boletim de voto não será o complicar a vida quer ao votante quer ao escrutinador, mas sim o garantir o secretismo do voto, tal como estatuído no artigo 10º da Constituição da República Portuguesa. E o que diz a Constituição? “O povo exerce o poder político através do sufrágio (…) secreto”. A Constituição volta ao assunto nos artigos 113º, 121º, e 228º (este em particular exclui do âmbito da revisão constitucional o secretismo do voto).
Sendo que mais esclarecimento que este não há, teremos que olhar ao contexto histórico em que a constituição é aprovada. Até ao 25 de Abril de 1974 o direito ao voto, além de ser restrito, não tinha garantias de ser secreto – e não tinha para que o voto de cada um pudesse ser usado contra o eleitor. A preocupação no secretismo é a liberdade de escolha sem medo de represálias. O secretismo do voto não é uma obrigação, mas uma garantia de não represália contra o eleitor. É uma garantia de anonimato do votante face ao boletim. Concordarei que essa garantia deve ser mantida, tal como “concorda” a Constituição da República Portuguesa.
Ora voltando ao assunto em epígrafe, diz também a Constituição na alínea c) do seu artigo 9º que é uma das tarefas fundamentais do estado “defender a democracia política”, de onde eu tomo a liberdade de subentender que se incluí a defesa do direito de voto. Com a criação e aplicação de normas legais contrárias aos princípios constitucionais, e em consequência escudando-se num preciosismo técnico legal, o estado não está a cumprir com as suas obrigações.
A lei eleitoral da assembleia da república dita que o boletim de voto deve ser dobrado em quatro antes de ser inserido no envelope “de cor verde”. Logo aqui levanta-se-me uma dúvida, admito que mais jocosa que séria: são anulados os votos dobrados em 6 ou em 8? Deveriam ser, sendo que a lei manda dobrar em quatro. Voltando ao sério… Este envelope “de cor verde” é depois introduzido no “envelope branco” juntamente com cópia do documento de identificação. Assim está garantida o secretismo do votante. O envelope é remetido pelo correio e será mais tarde tratado.
É chegado o dia da contagem. Presumo que o escrutinador abra o envelope branco, valide o eleitor, e junte o envelope verde ainda fechado a grupo de votos a contar. Está assim garantido o secretismo do voto. Dentro do envelope “de cor verde”, secretamente, repousa o boletim. Dobrado em quatro. O dobrado em quatro aqui tem duas funções: a de caber no envelope, e a de garantir o secretismo do voto (sendo redundante nesta função com o isolamento no famoso envelope “de cor verde”. O que significa que mesmo após abertura do envelope “de cor verde” e subtracção do seu interior do boletim de voto dobrado “em quatro” o voto continua a não ser visível, portanto ainda secreto. Será, presumo, então desdobrado e colocado num grupo de votos a contar. É, portanto, o desdobrar do boletim de voto que “rompe” o secretismo.
Voltando ao secretismo. É secreto o voto dum líder partidário? Dum candidato numa lista? Seguramente não. Pelo menos em princípio. E também em fim. Porque apesar de eu poder, com um grau de certeza praticamente absoluto, adivinhar em quem eles votaram a verdade é que não consigo ligar um boletim de voto específico a nenhum deles. E aqui é que reside o fundamento do secretismo do voto. Garantir que o “autor” de uma qualquer cruz, aquando da manipulação de um qualquer boletim, permanece secreto.
Ora, quanto à contagem dos votos dos emigrantes, e sendo que os boletins de voto estarão forçosamente dobrados. O introduzir do boletim juntamente com a cópia do documento de identificação no mesmo envelope “de cor verde” em nada quebra o secretismo até que o boletim, forçosamente dobrado por não caber no envelope de outra forma, seja desdobrado. Ao escrutinador cabe, à vista dos demais escrutinadores – porque esta é uma tarefa colectiva, validar o eleitor e, com algum cuidado acrescido, depositar o voto, ainda dobrado, num grupo de boletins a desdobrar – quiçá introduzi-lo numa urna para se misturar com outros. Tendo sido validado o eleitor antes a introdução em urna o voto é válido e, se não desdobrado, secreto. Portanto, trata-se de adicionar um passo. Guarde-se a contagem desses votos e rol à parte até que quem direito se pronuncie, se for esse o caso, possibilitando a sua inclusão ou não nos totais.
Mas mesmo que o secretismo seja quebrado, voltemos ao contexto político-social da Constituição da República Portuguesa e à necessidade de garantir que o direito de voto não possa ter repercussão directa sobre um votante específico. A preocupação com o secretismo é utilitária, serve um outro fim e não é um fim em si mesmo. Não se trata de proteger a eleição, mas sim o eleitor. Tendo colocado o boletim de voto junto com a cópia do documento de identificação o que se verifica não é uma violação dum qualquer princípio eleitoral, mas a renúncia, ainda que inconsciente, duma garantia individual. Não lesa a eleição. O estado cumpriu com a sua função, ao fornecer o envelope “de cor verde” e o “envelope branco”, de proteger a garantia – o eleitor não precisa de ser protegido dele mesmo.
E depois levanta-se uma outra questão. Quem poderá, não se podendo garantir o secretismo do voto, agir contra um eleitor específico? Só há uma possibilidade: os escrutinadores da mesa que proceda à contagem desse voto. Ora, se não podemos confiar nessas pessoas que raio estarão elas a fazer ali?
Não há razão alguma para não se contabilizarem estes votos para além dum lacónico e assoberbado “a lei é a lei”. Até porque a lei não é SÓ a lei, qualquer aprendiz de direito constitucional o saberá dizer.