É dito e sabido que a primeira vítima da guerra é a verdade. Como tal não é novidade que assim o seja nas “democracias liberais” da Europa ocidental. A campanha de desinformação de que somos vítimas é algo que não terá semelhante pelo menos desde os tempos da II Grande Guerra.
Todo o factóide serve para suportar a narrativa dominante, seja ele a do fugitivo que em Março passado nadou 2h30 em águas com temperaturas próximas do zero ou o famoso Fantasma de Kyiv. A imprensa do “mundo livre” embarcou nas duas republicando-as à exaustão sem sequer parar para pensar. Em notas lacónicas alguns meios de comunicação social vieram dar parte do comunicado dos serviços de propaganda de Kyiv que o famoso fantasma era afinal uma construção de propaganda.
Nem um só pedido de desculpa pelo mau serviço prestado. Talvez porque, entretanto, aqueles a quem a comunicação social “livre” presta serviço não seja ao público em geral, mas aos propagandistas de Kyiv. E não, usar o termo propagandistas não é exagero desde que as autoridades de Kyiv subjugaram todas as redacções noticiosas do país à vigilância do Serviço de Informações – departamento dos serviços secretos ucranianos. A partir desse momento nenhuma notícia sai da Ucrânia sem um prévio “selo de qualidade” dos serviços secretos.
Mas se da parte da Ucrânia, país em guerra, é compreensível que o controlo da informação possa até ser uma necessidade militar (dependendo, claro está, de que informação se está a falar) o mesmo não se pode dizer das “democracias liberais” ocidentais. A escolha, porque é uma escolha – como já o disse o provedor do jornal Público, de mostrar tão só a informação com o selo de qualidade de Kyiv. Despontam aqui e ali excepções a esta auto-imposta férrea doutrina, como por exemplo quando em princípio de Outubro o jornal alemão Bild desmascara a “verdade” dos dentes arrancados como forma de tortura na região de Karkhiv, história largamente reproduzida pela imprensa “livre”. Isto não prova se houve ou não casos de tortura, mas demostra para margem de dúvidas que a imprensa “livre” pega acriticamente nas notícias que provém da Ucrânia.
Mas este abandono dos factos materiais, e mesmo o reescrever de factos anteriores, vem de antes. Vem já da segunda metade do ano de 2021. Se durante anos a fio, com maior foco a partir de 2014, os relatos de milícias fascistas e mesmo nazis erram recorrentes em órgãos de comunicação tão insuspeitos como a BBC ou a ARTE, a partir do terceiro quartel do ano passado estes começaram a ser contestados. Primeiro foi vendida a narrativa de que a extrema-direita na Ucrânia tinha menos votos que nas “democracias liberais” ocidentais, esquecendo que esta extrema-direita era medida partir do centro político da Ucrânia. Um centro político que defende a pureza da etnia ucraniana, de onde se excluem todos os demais sejam eles polacos, húngaros, russos, ou ciganos (estes são ainda mais desprezados do que os russos).
O relatório para as práticas conexas com os direitos humanos produzido pelo governo dos Estados Unidos aponta, para o ano de 2021 no seu capítulo dedicado à Ucrânia, a existência de “execuções extrajudiciais pelo governo ou seus agentes”, “prisões arbitrárias”, “severos problemas com a independência judiciária”, abuso de cidadãos do Donbas detidos, “falta de liberdade de expressão incluindo violência contra jornalistas”, crimes motivados por anti-semitismo, “crimes envolvendo violência contra pessoas com deficiência, membros de minorias étnicas, e [comunidade LGBT]”, e “as piores formas de trabalho infantil” (sem especificar quais).
Os relatórios homólogos publicados pelo Parlamento Europeu não dão conta de nenhum destes abusos, portanto, pelo menos até 2021, bem documentados pela imprensa ocidental. Aliás, a leitura da situação do respeito pelos direitos humanos por parte das autoridades de Kyiv está em linha com um dos três galardoados com o Prémio Nobel para a Paz: o Centro para as Liberdades Cívicas – que nos últimos anos não regista violação alguma das liberdades cívicas por parte do governo ucraniano. Dedica-se exclusivamente a denunciar esse tipo de violações ocorridas na Rússia – e nem assim conseguiram ser felicitados pelo sempre difícil de agradar presidente Zelenskyy. Estamos esclarecidos quanto ao peso da extrema-direita na Ucrânia, e pela pluma de Washington.
O mesmo presidente Zelenskyy que, relembre-se, concorreu às eleições presidenciais ucranianas de 2019, que ganhou na 2ª volta com quase 75% dos votos (30% na primeira volta), conduzindo a sua campanha praticamente na sua totalidade usando a língua russa e assente numa plataforma política de estudar a implementação dos acordos de Minsk, de promoção da paz, e apontando o caminho de uma tentativa de conciliação com a Rússia. De referir também diáspora ucraniana deu a Poroshenko, que conduziu uma campanha militarista e anti-russa, 55% dos seus votos. Enquanto Zelenskyy sobre de pouco mais de 5,7 milhões de votos para 13,5 entre a primeira e segunda volta, Poroshenko passa de 3 milhões para 4,5, dando um indício muito claro da política de vizinhança que o povo ucraniano pretendia seguir. Pretensão essa não era acompanhada pela diáspora. Esta vontade política foi reforçada quando nas eleições legislativas que se seguiram às presidenciais o partido do presidente recém-eleito conquista mais de metades dos assentos parlamentares. Dos 450 lugares o partido de Poroshenko conquista somente 25, com 8% dos votos, garantindo a 4ª posição no escrutínio.
A viragem da linha política de Zelenskyy está bem documentada na imprensa internacional. Pelo menos até 2021. E o que me interessa aqui é demostrar a orientação política da larga maioria do eleitorado ucraniano. Não ignorando o escalar da guerra civil do Donbass para uma guerra de “corpo inteiro” entre a Rússia e uma Ucrânia mais que patrocinada pelas “democracias liberais” ocidentais, façamos um avanço rápido para Outubro de 2022. Momento em que é atribuído o Prémio Sakharov ao povo ucraniano, com destaque, entre outros, para o seu presidente.
O Prémio Sakharov, dito para a Liberdade de Pensamento, “[é] uma forma de reconhecimento de pessoas, grupos e organizações que tenham dado um contributo excepcional para a defesa da liberdade de pensamento”. Não será novidade para ninguém que este prémio, como muitos, para não dizer todos, outros do género têm um pendor político. São atribuídos em função da percepção e agenda daquele que os atribui. Mas tirando o ano de 2009 o prémio foi sendo sempre atribuído a quem lutava pela liberdade de pensamento, ou, para parafrasear um político da praça nacional, pelo menos “lutava pelo que acreditavam ser a sua verdade”. Pela sua, não contra a dos outros.
Já em Agosto deste ano o caso do famoso relatório da Amnistia Internacional (AI) sobre as violações aos direitos humanos por parte das forças armadas ucranianas – note-se que após vários relatórios do mesmo teor sobre as forças armadas russas – tínhamos tido “um cheirinho” do que aí vinha. A então responsável do gabinete da AI em Kyiv afirmou no seu anúncio de demissão que tinha feito todos os possíveis para que esse relatório nunca fosse público. A justificação por ela dada para esse esforço foi a de que “outros”, que não os ucranianos, não poderiam “entender o que é condenar um exército de defensores”.
Nesta acepção devíamos ter ignorado os crimes do exército iraquiano ou dos talibans no Afeganistão. Será talvez por isso que alguns países gritam “invasão” quando se referem ao derrotar das forças alemãs na frente oriental e depois glorificam os colaboradores nazis nacionais, como por exemplo o Stepan Bandera na Ucrânia – que até tem direito a nome de avenida em Kyiv, curiosamente a avenida que leva ao local do massacre anti-semita Babi Yar. Mas não há glorificação nazi na Ucrânia.
Recentemente, a 13 de Novembro de 2022, as autoridades ucranianas retiraram a acreditação a um conjunto de jornalistas ocidentais, nomeadamente das cadeias noticiosas CNN e Sky News. A razão oficial, como anunciada por quem de direito, foi o não respeito das normas impostas aos repórteres e terem circulado sem vigilância na cidade de Kherson. Desse cirandar à vontade emergiram fotografias de supostos colaboradores russos amarradas a postes, algo que se tinha já visto aquando da retirada russa da região de Kyiv, e, talvez mais incomodativo para a narrativa oficial, fotografias de bandeiras com simbologia nazi e de militares ucranianos a fazer a saudação romana.
Durante todo este tempo ouvimos repetidas vezes da boca da senhora Von Der Leyen, cuja função deveria ser a gerir a comissão e não de fazer declarações de orientação política, a apelo aos valores partilhados entre a UE e a Ucrânia. Nunca, no entanto, foram especificados quais são esses valores. Mas tendo em conta o dito acima, essa partilha não augura nada de bom.