Quando a memória nos trai

É dito e sabido que a memória é traiçoeira, selectiva, cruel e injusta, pois esquece-se por vezes de coisas importantes como aquele número de telefone tão necessário por exemplo. Por vezes não esquece, ignora. Tão frequente que é termos algo “debaixo da língua” e não sair.

Por isso todos nós temos os nossos truques para guardar as coisas que nos são importantes: uma agenda para os números de telefone e para os compromissos, um caderninho para as receitas, um arquivador para as facturas da água e da luz, uma caixa de sapatos onde guardamos coisas a avulso, sem algum valor aparente mas que são os nossos pequenos tesouros. Guardamos as fotografias das férias de 1985, guardamos aquele bilhete de comboio de quando fomos ao zoológico pela primeira vez.

São infindáveis as coisas que precisamos de guardar fora da nossa cabeça, porque a cabeça esquece-se, e um dia apaga-se, como é da lei da vida. Mas a caixinha de sapatos com o bilhete do zoo ficará para sempre. Lá guardada, num sótão qualquer.

Mas mesmo nós, que com tanto zelo fomos enchendo essa caixinha com as coisas que à altura nos pareceram importantes cometemos o desleixo de não organizar essas memórias físicas. Fica tudo a monte. E se tivermos um apetite voraz pela recordação acabamos com não uma mas várias caixinhas, que guardamos em todo o lado, sem a menor ideia do que temos lá dentro. E mais… aquilo que na altura não pareceu importante procuramos agora em vão por todos esses baús de memórias. Porque não sabemos hoje o que vai ser importante amanhã, e porque não podemos guardar tudo, quando não outra coisa não faríamos para além de guardar e organizar e seleccionar e catalogar e… etc, etc…

Mas não é só o indivíduo que tem memória. Os povos também a têm. Como se explicaria, de outra forma, o que é ser português, ou francês, ou chinês. Há uma memória colectiva que nos une, a nossa velha de 900 anos. Pequenas coisas como uma palavra, ou grandes como o Mosteiro dos Jerónimos. Coisas aparentemente insignificantes como uma carta real datada de há séculos atrás, ou a fotografia de Salgueiro Maia frente à coluna militar que tomou Lisboa naquela madrugada de Abril. Os golos do Eusébio, o caminho marítimo para Índia, o Nobel de Egas Moniz, os Lusíadas de Camões… Tudo isso é a nossa memória, a nossa História. É isso que faz de nós que nós somos. Sem história, enquanto povo, não somos nada. E essa memória não se pode guardar na nossa cabeça. Nem nas caixinhas que cada um tem em sua casa.

Essa memória tem que ser guardada de forma organizada, catalogada por temas e épocas. E essa é uma tarefa grande demais para um Homem só.

O que faz de nós Mortaguenses? O facto de vivermos em Mortágua? Não será isso por certo, pois eu há mais de 10 meses que deixei a minha vila natal e não sou por isso menos Mortaguense. O que faz de nós Mortaguenses, à semelhança do que faz de nós Portugueses, é a nossa memória colectiva – a nossa História. É o TEM, é o Tomaz da Fonseca, são as Cerâmicas, é o João das Ideias, é a Câmara Velha, é a estrada velha, é o Juiz de Fora, é aquela história pequenina no jornal de “mil novecentos e carqueja”, é um sem fim de coisas que esgotaria por certo estas páginas e de outras publicações que haja.

É algo que ultrapassa cada um de nós.

E agora, pergunto eu, onde posso eu comprar um livro do Tomaz da Fonseca, se o quiser na minha colecção? Onde posso eu rever a glorioso momento que foi o Auto do Juiz de Fora e a sua transmissão televisiva? Onde posso eu encontrar o primeiro número do primeiro jornal local? Ou do mais recente?

Em lado nenhum.

A nossa memória cada um a guarda consigo. E partilhamo-la, claro, quando nos encontramos e contamos esta e aquela história. Mas mesmo essa partilha é limitada, pois nós não nascemos “no princípio dos tempos”, e por certo não ficaremos até ao fim.
Essa Memória Mortaguense terá a sua casa e o seu lugar de honra num Arquivo Municipal de Mortágua.

Arquivo esse que deve não só albergar tudo o que já foi, mas que deve activamente registar tudo o que vai sendo. Hoje em dia é fácil registar uma actuação do Orfeão Polifónico, de um dos 5 Ranchos do Concelho, de outra qualquer colectividade cultural. É fácil guardar aquela notícia de 30 segundos que passou quase no fim do telejornal que, ainda que pequenina, para nós é a maior notícia do mundo, pois fala da nossa terra.

É fácil guardar cópias de todos os jornais, de todas as revistas, de todos os livros que falem da nossa terra. Organizar um arquivo fotográfico, registar o som dos pássaros que habitam a nossa vasta floresta, o som dos riachos de pedra em pedra, do comboio, dos motosserras, de tudo…

Guardar as lendas e os contos que os nossos idosos tão bem sabem contar, e que um dia as levarão com eles dentro da sua memória. À semelhança da “parceria” de Tomaz da Fonseca e do Poeta Cavador, cabe-nos a nós registar essa memória oral.
Cabe-nos a nós registar tudo.

Tudo… guardar tudo. Pois só assim, amanhã, teremos a certeza de que guardamos o que é importante.