Licença para matar

Não sou a favor da eutanásia. Mas isso não quer dizer que seja contra.

Legalizar a eutanásia é permitir que existam pessoas que podem matar outras. De forma crua e bruta.

A eutanásia, recebe o prosaico nome de “suicídio assistido” como forma de contornar aquilo que de facto é: um homicídio consentido. Dum ponto de vista social não vejo como grande mudança o facto de se permitir que médicos matem pacientes. Já permitimos que soldados matem pessoas. E fazemo-lo sem grande problema de consciência.

Não posso ser a favor da eutanásia porque há três questões que ou não me sabem responder ou, pelo menos, não me podem garantir que não lhes será dada uma resposta errada.

Quanto sofrimento é muito sofrimento e quão irreversível é qualquer situação clínica?

Quão lúcido estou eu se sujeito a esse sofrimento ou irreversibilidade?

Quem me garante que a eutanásia não passará a ser oferecida com tratamento alternativo ou mesmo preferencial?

Da primeira questão, a mais complexa, tenho a dizer que me parece deveras improvável que se possa garantir um mecanismo de medida e que se possa atestar a irreversibilidade de todas as situações aparentemente irreversíveis. Certo que concordo que há situações onde não restarão dúvidas sobre o sofrimento. Mas a partir de que nível de sofrimento é que se pode autorizar uma pessoa a matar outra? Da irreversibilidade da situação clínica direi o mesmo. Há situações sem dúvida irreversíveis, mas há outras quem surpreendem o mais experiente dos médicos.

Depois temos toda uma miríade de incapacidades, e não doenças. Uma amputação múltipla, uma perca de visão ou audição, etc… são irreversíveis, é certo. Mas não há quem seja capaz de se adaptar? A partir que ponto, uma vez mais, é que o sofrimento psicológico se torna impossível de suportar?

Tomemos o exemplo da lei do aborto, em tudo muito semelhante a este caso. Uma mulher é livre de abortar até um determinado ponto da gravidez. Mediante condições clínicas bem precisas esse prazo pode ser alargado. Mas, repito, “bem precisas”. Sem espaço para arbitrariedades. Quando se fala em permitir que alguém mate alguém não pode haver a menor margem de dúvida.

Da segunda questão, que é de certa forma dependente da primeira. Estando eu sujeito a um sofrimento extremo, que possa ser medido, estarei eu lúcido o bastante para decidir sobre o fim da minha vida? Metendo a religião ao barulho, porque há quem a pratique, estando no mesmo exacto ponto da escala de sofrimento e irreversibilidade, terão um crente convicto e um convicto ateu a mesma “facilidade” em apelar ao fim da sua vida?

Por fim, a garantia da não deturpação do fim da medida. Para aqueles que leram o Admirável Mundo Novo, do Aldous Huxley, estarão recordados que não havia idosos. Não eram produtivos, tornavam-se dispendiosos, então eram terminados (não me lembro agora do termo de novilíngua nem estou para ir procurar, confesso). Sendo a legalidade da eutanásia uma realidade, não serão alguns hospitais, ou alguns sistemas de saúde, ou alguns sistemas tout court, seduzidos pela Huxleyiana redução de custos? Estando eu numa situação clínica delicada, vamos supor que aquém do sofrimento extremo, que possa requerer um tratamento continuado dispendioso, não poderá haver o risco de me oferecerem a eutanásia como mais uma solução? Ou de ma oferecerem como “a” solução?

A oferta da morte como solução clínica é algo que nem nos é tão estranho no hemisfério norte. E não falo de países onde a eutanásia foi legalizada. O sistema de saúde dos Estados Unidos rege-se, ainda em grande parte, e cada vez mais com a presidência de Trump, sob esse princípio: tens dinheiro tratamos-te, não tens deixamos-te morrer. A única diferença é a intervenção ou não intervenção de pessoal qualificado.

Garantam-me resposta conveniente, ou pelo menos garantam-me que a resposta não será a errada, a estas três questões e ter-me-ão na linha da frente da defesa da eutanásia.

Escusei-me propositadamente a comentar a eutanásia a pedido familiar, eufemismo para homicídio por procuração, por a ela nem sequer se aplicar uma destas três questões que considero fundamentais.

Questão bónus:

Deveríamos ter morto o Stephen Hawking?


Este texto foi originalmente publicado no BOM DIA.