Levantados do Chão

Em 1774, o filósofo e político Edmund Burke, dizia, em Bristol, a uma plateia de eleitores acerca daquele que seja eleito ao parlamento, e permito-me eu extrapolar, a propósito daquele que tome opinião em prol da causa pública que “[a] sua opinião imparcial, o seu julgamento maduro, a sua consciência iluminada, ele não a deve sacrificar para vocês, para homem algum, ou para nenhum grupo de homens. (…) O vosso representante deve-vos, não só a sua capacidade de trabalho, mas o seu julgamento, e trai, ao invés de vos servir, se ele o sacrifica em prol da vossa opinião.

Claro que os termos utilizados devem ser contextualizados à época, mas numa tradução temporal livre o que Burke nos diz é que aqueles que dão opinião pública com o intuito de influenciar a actividade política não o devem fazer movidos pelo exclusivo propósito de agradar àqueles para quem o sobre quem fala. Deve fazê-lo de acordo com a sua consciência e a sua leitura da realidade.

Este texto foi inicialmente publicado no BOM DIA

A 2 de Abril deste ano insurgi-me contra a intenção de se dar o nome de Amália Rodrigues a uma rua da terra onde moro: Differdange, no sul do Luxemburgo. A minha crítica tinha três níveis: histórico, sociológico e cultural.

Comecemos pelo último. Certo que o fado é património imaterial da humanidade e que canta, dizem, a alma portuguesa. Mas isso também o fazem, por exemplo, os discos do Fausto. E, dentro das artes das palavras, contém um espectro muito limitado de formatos e mesmo vocabulário, não descurando o facto de grandes poetas portugueses do século XX terem escrito fados.

Dum ponto de vista Sociológico, a alma que é cantada é uma construção. Uma construção que permitia veicular, ainda que em muitos raros casos contestar, uma forma de vida submissa e de sofrimento: todos temos a nossa cruz, o nosso fado. Uma forma de vida bastante submissa e resignada perante as agruras da vida. De aceitação da vida como um destino contra o qual nada se pode fazer.

E é essa imutabilidade do destino que serviu, precisamente, de suporte a 48 anos de ditadura fascista-católica que remeteram todo um povo a uma miséria, mais do que económica, social e humana extremas. Para citar o Ary, que também escreveu para a Amália, “um país onde o pão era contado, onde quem tinha a raiz tinha o fruto arrecadado, onde quem tinha o dinheiro tinha o operário algemado, onde suava o ceifeiro que dormia com o gado, onde tossia o mineiro em Aljustrel ajustado, onde morria primeiro quem nascia desgraçado.

Nunca me viram, nem irão ver nunca, a dizer que a Amália era de alguma forma ligada, por sua vontade, ao fascismo. Sei de fonte muito segura a sua ajuda, precisamente, ao movimento de resistência e luta contra o Salazarismo. Mas a verdade é que o fado era um veículo da submissão de opinião nesse regime.

Nunca me viram também, nem irão ver nunca, a clamar que se proíba o fado ou que se proscrevam os fadistas. Por muito que algumas respostas a esta minha posição o pretendam sugerir.

Voltando a Burke, tenho para mim que se tomo posição é para juntar algo ao corpus do debate público. Se fosse para dizer o que já está dito ficaria calado. É esse, permitam-me a soberba, ensejo de ver mais longe e mais claro que me levam, quase sempre, a criticar aquilo que entendo não ser mais que a manutenção do que está sem que a mais se aspire. Como diz o Sérgio Godinho “há quem assegure/que é depois da vida/que a gente encontra a paz prometida/por mim marquei-lhe encontro na vida”.

Sim, a mulher da limpeza e o pedreiro são ainda a grande realidade. Sim, o fado e a sardinha são ainda os “emblemas” da portugalidade. Não me terão nunca a insurgir-me contra os retractos dessa realidade portuguesa. A realidade não se pode esconder. Mas a imagem, que se passa e que uma comunidade tem de si mesma, pode, e deve, diz-nos Burke, ser trabalhada.

A inexistência duma rua com o nome Amália Rodrigues em nada retira à dimensão que ela possa ter. Muito menos diminui em alguma coisa a identidade portuguesa do Luxemburgo, como alguns dos que me responderam parecem temer – muito fraca lhes é a identidade se por coisa tão pouca os abandona, devo dizer. Mas a existência de uma rua com o nome de Sofia de Mello Breyner Anderson junta a essa cultura. E junta muito.

Permite mostrar aos de cá que não somos só fado. Que nós somos fado já eles sabem – foi aliás por isso que nos escolheram a nós para força de trabalho, há já mais de 50 anos. Já o José Mário Branco indagava, “o respeitinho é muito lindo e nós somos um povo de respeito, não é filho?”.

Permite mostrar, já Vergílio Ferreira dizia, que “da minha língua vê-se o mar”, não se vêem só “as quatro paredes caiadas” e “um São José de azulejo” (…) “no conforto pobrezinho do meu lar” da Amália.

Insurgi-me e insurgir-me-ei sempre que se recusem a trazer mais ao povo, do meu ou de outro, mais que aquilo que lhe permitem desejar. É pela inclusão dos portugueses do Grão-Ducado no grande edifício que é a cultura do seu país que eu me bato. Só isso lhes permitirá, libertando-os dos estereótipos que os agrilhoam ao seu destino e à sua cruz, ser parte inteira da comunidade de acolhimento que é o Luxemburgo.

Insurjo-me contra aqueles que perante a ignorância do seu povo no que toca à cultura do seu país prefiram alimentá-la e confortá-la do que lhes abrir os horizontes. Não, obrigado. Não dou para esse peditório.

Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira. Enfim, cá estou outra vez a sonhar. Como os homens a que me dirijo