Le Pen, um candidato de Classe

Cometendo a soberba de me citar, escrevi há ano e meio, sobre o resultado do partido de Marine Le Pen na primeira volta das regionais francesas que: “(…) não é um mero produto do acaso nem o resultado dos ataques de Paris aqui há dias. É a consequência de um sistema que de democrático (do povo e para o povo, como indica a raiz da palavra) tem cada vez menos. Quando os tempos se tornam duros as pessoas endurecem. E estão a endurecer numa Europa que tem já, no global, perto de 20% de votos em partidos de, sem rodeios, extrema-direita. Uma Europa onde, como no leste da Eslováquia, em que o presidente de um dos governos regionais se recusa a celebrar o dia da derrota do Nazismo a pretexto de que foi esta derrota foi um retrocesso histórico.”

Ano e meio volvido temos Trump nos Estados Unidos, temos o Brexit, temos uma vitória à rasca do candidato ecológico na Áustria e temos a não-vitória do partido de Wilders na Holanda. Das duas eleições europeias referidas (Áustria e Holanda) cantámos vitória a quem quisesse ouvir ignorando que nos dois casos a extrema direita teve mais votos do que nos actos eleitorais anteriores.

Preparamo-nos para fazer o mesmo no próximo Domingo à noite. Sim, não acredito que Marine Le Pen vença o escrutínio da segunda volta das Presidenciais francesas. Mas o que me separa dos demais arautos da derrota da herdeira de Jean Marie é a fé. Não é uma fé que eu tenho, é uma certeza. A França não está, ainda, no ponto de a eleger. Mas a sua subida é indiscutível, tal como o é a certeza de que continuará a subir no futuro – as legislativas assim o mostrarão.

E porque digo que me separa a fé? Assistimos a , do alto do seu pedestal filosófico, comentadeiros e opinistas que colocam toda a sua certeza da derrota do nacionalismo nas inteligência social do Povo francês, tal como colocavam a derrota de Trump na do norte americano. Esquecem.se que as razões, e por esta ordem, da queda do movimento de esquerda, subida do populismo de direita e, por fim, aparecimento do populismo de esquerda se devem a nada mais do que a esta dogmática fé.

Quando a partir do início dos anos 80 do século passado os governos europeus começaram a ceder à tentação de substituir o Estado Social do pós-guerra pelas maravilhas do mercado livre, tal qual anunciada pelos profetas da escola de Chicago, este desfecho era inevitável. Este processo de reorientação política de fundo cristalizado na governança europeia, do qual Tony Blair foi o messias e Macron é sucessor, é um acto pensado e propositado, mas para o qual, e agora permito-me eu ter fé, não se conheciam as consequências reais. O maior obstáculo a livre propagação do capitalismo selvagem era, e é, o movimento operário de base. Thatcher, sabendo disto, levou até ao fim o braço de ferro que travou com o movimento sindical inglês. Depois desse momento assistimos tão só a um replicar do cenário um pouco por todo o lado. Até na Polónia, onde um sindicato deitou abaixo o regime comunista (nota: a este propósito é interessante ver quais as revindicações feitas à altura pelo Solidarnosc) a fim dos sindicatos não durou muito a ocorrer, com as consequências que hoje temos bem patentes.

A queda dos sindicatos tem como consequência imediata o fim do protesto à implementação das políticas neoliberais, mas tem a médio prazo uma outra de muito maior impacto. Os sindicatos, além da sua função imediata na luta de classes, tinham uma função formadora social. Sendo o proletariado (aquele que mais não possui que a sua força de trabalho), por consequência socioeconómica, menos literato, os sindicatos, através das suas contantes reuniões, eram escolas sociais. O único local onde um simples trabalhador podia discutia a sociedade e a política numa perspectiva que não aquela que interessa ao mercado. Um travão à existência duma opinião (tão) dominante. Acto contínuo ao fim desta “escola popular” foi o surgimento da teoria do “TINA – there is no alternative” (não há alternativa, em português). Para suportar esta política e evitar que e discussão ou tão só o questionar pudesse fazer cair o N de TINA, as escolhas políticas passaram a ser-nos apresentadas como sendo muito complicadas para que o cidadão comum as pudesse realmente perceber. Aos jornalistas eram dadas conclusões de estudos efectuados por entidades “independentes” (nota: engraçado como se é independente quando se recebe dinheiro de interesses corporativos, mas não se é quando se recebe do estado) e as conferências de impressa preenchidas com termos técnicos dignos da imaginação de Orwell e do seu 1984. Palavras sem anterior significado ou com significados novos cujo verdadeiro sentido era, uma vez mais, muito complicado para o cidadão comum (um pouco como as liberalidades de Ricardo Salgado).

Com o apertar das condições de vida dos trabalhadores (relembro que nos anos 60 um operário francês podia ser a única fonte de rendimento duma família que era proprietária da sua habitação e colocava dois filhos na universidade) à direita populista bastou acenar com os velhos fantasmas dos imigrantes que à vez nos roubam o trabalho e vivem à custa do nosso sistema social e dos comunistas que não querem é trabalhar quando exigem que existam limites máximos ao tempo de trabalho e mínimos ao valor deste. À falta duma explicação consistente, duma análise aprofundada da realidade e duma observação do passado (em suma, dum materialismo histórico dialéctico) os fantasmas ganham terreno – sempre que falha a ciência cabe à fé dogmática ocupar o lugar. A explicação simples, os silogismos básicos e uma qualidade de vida sempre decrescente são uma receita eficaz, como aliás a história o pode comprovar.

Cortada das suas bases e como tal sem meios para perceber realmente o que passa, as elites (?) intelectuais da esquerda dedicam-se a digladiar argumentos filosóficos num mundo que é cada vez mais só seu. Amparados por uma soberba digna dos escolhidos de Deus, são todos eles senhores supremos da verdade. Tenhamos que a base das teorias comunistas de distribuição de riqueza é mais nobre, e moralmente mais válidas, que as do Darwinismo económico. O que não se pode fazer aqui é um salto de fé e considerar que todos os esquerdistas são moralmente superiores. Foi isto que levou essa elite a distanciar-se cada vez mais do centralismo democrático (essencial ao movimento proletário) e a colocar-se no papel de profetas, por vezes de quase divindades. Disputam entre si a forma correcta de operar essa redistribuição de riqueza. Dividem-se em classes esquecendo-se da Classe que dizem representar. Note-se que este afastamento mais não é, também, que resultado do fim do movimento sindical de massas.

Por fim, o surgimento dos populismos de esquerda vem ocupar o espaço deixado órfão por esta esquerda de classes, e não de Classe. Aqueles que se recusam a ser adoptados pelo populismo de direita encontraram aqui se não uma casa pelo menos um refugio temporário. É preciso não esquecer que com o tempo, já Platão nos dizia, até mesmo a mais esconsa das cavernas se torna todo o nosso mundo e assim restringe a nossa ambição. Cá fora discute-se a óptica enquanto lá dentro, no fundo da caverna, só nos restam as sombras para nos animar.


Este texto foi originalmente publicado no BOM DIA.