Na edição do Governo Sombra de 8 de Novembro de 2019, o Ricardo Araújo Pereira disserta um pouco sobre o que é isto da esquerda-identirária e do quanto, seguramente, não são de esquerda.
Transcrevi a divagação do Ricardo, adaptando aqui e ali para poder converter o discurso oral, errático por definição, num pedaço de texto que permitisse uma leitura coerente. Peço desculpa se alterei de alguma forma as palavras e a intenção do autor.
Não subscrevo sempre tudo aquilo que o Ricardo Araújo Pereira diz. Mas reconheço que é um orador nato e que puxa, na generalidade, o barco para o lado certo.
Fica aqui para memória futura.
Os quatro discursos de ódio online são eles: o discurso violento, o discurso descredibilizador, o discurso da desilusão, e o discurso desmobilizador.
Um dos problemas em definir discurso de ódio é que o de ódio para umas pessoas é uma coisa, e para outros basta uma crítica para ser discurso de ódio.
O discurso violento é de ódio, citando Joacine Katar-Moreira: “filha da ‘asteriscos’, tu nem para ‘asteriscos’ serves, vai para a tua terra”. Isto é ódio. Esta vem dos livros. Isto é ódio purinho.
Agora, o segundo exemplo, o discurso descredibilizador: “ele até pode ter ‘asteriscos’, mas não está apta para… agora a ‘asteriscos’ não nos representa”. Para já, aqui já tenho dificuldade em descobrir o que são os asteriscos. Uma pessoa fazer uma consideração de esta senhora não me representa, ou que ela não está apta, não é uma mera opinião?
Terceiro exemplo, o discurso da desilusão: “julguei que, mas afinal não…”; “nunca imaginei que…”; “fui induzido em erro…”. Isto é ódio!?
O discurso da desmobilização: “ninguém presta”; “não se pode confiar”; “não vale a pena votar”; “vamos ser enganados”. Isto, acho eu, são opiniões. Que até podem ser parvas, não dúvida. Agora, os tweets que ela trocou com Daniel Oliveira parecem-me reveladores de alguma tensão entre as duas esquerdas, uma esquerda que a gente vai chamar, se calhar, identitária, e doutra que chamamos uma esquerda tradicional.
O problema é esse, o partido que era aglutinador parece-me agora ser divisivo. E essa é a questão. Porquê? Porque é aí que está o nó do problema. Há uma tensão entre as esquerdas, e essa tensão ficou muito claro nos tweets, além destes, no que a Joacine Katar-Moreira dirigiu ao Daniel Oliveira.
Esses tweets em que Joacina Katar-Moreira reage às críticas do Daniel, encostando-o à extrema direita parecem-me reveladores dum clima de caça à heresia e purga do herege, que é típico. E duma coisa ainda mais preocupante que é a alienação de aliados naturais, que é uma coisa que me faz bastante confusão à esquerda. Depois, a resposta do Daniel Oliveira, que foi enérgica e indignada, pode gerar pode gerar perspectivas que são sonsas.
A primeira perspectiva sonsa é: “ai já não se pode criticar o Daniel que ele reage logo”. Eh pá… sim. Então já não se pode reagir a críticas que uma pessoa acha que são estapafúrdias? Eu acho que fez bem em reagir.
Então e outra crítica sonsa é: “e o foco Daniel, e o foco!? Então não é melhor atacar o adversário em vez de pessoas do mesmo lado da barricada?”. Eh pá, não. Porque o que está em casa é exactamente uma questão de foco. O problema da tensão entre estas duas esquerdas é uma questão de foco, é exactamente isso.
A esquerda identificou e bem que, características como a cor da pele, o género, a orientação sexual eram factores de desigualdade. Mas, parece haver uma esquerda que esqueceu que a classe social é o factor de desigualdade provavelmente mais importante e decisivo, e que se sobrepõe a todos os outros. Não esquecendo a cor, o género e a orientação sexual, a classe social é imporante.
Por exemplo, uma das vozes principais desta, vamos chamar, esquerda identitária em Portugal, é o professor universitário, comentador político, e ex-deputado Miguel Vale de Almeida. E ele – vocês dirão: “isto é um pormenorzinho”, e é mas eu acho significativo – ele escreve numa plataforma em que se apresenta, faz a sua autobiografia e apresenta-se como: “Otimista impenitente. Um bocadinho obcecado com as desigualdades de género, sexuais e étnico-raciais, confesso.”
Ou seja, porque é que eu acho significativo. Porque se trata duma pessoa de esquerda que é exaustiva a enumerar as desigualdades que a afligem, e bem, mas as desigualdades sociais não constam da lista. E isso, aliás, ficou bem espelhado na prática do professor Miguel Vale de Almeida enquanto deputado que, assim que fez o que tinha a fazer, ele mesmo o disse “aprovei o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que eu tinha para fazer está feito, muito boa tarde até à próxima”.
Há até pessoas que tentaram dizer “então a identidade e a classe não são coisas parecidas?” Na verdade, não, são coisas até bastante diferentes. Desde logo porque a classe é uma consequência da desigualdade social, e, por exemplo, a orientação sexual não é uma consequência da desigualdade social. E, portanto, uma pessoa que luta para combater a desigualdade social, em última análise luta para destruir a classe. Quem luta para combater a desigualdade, por exemplo, sexual não luta para destruir o sexo das pessoas. Isso politicamente faz uma grande diferença.
O que me parece, acho eu, é que a esquerda identitária além de ser divisiva, além de ser individualista, e não procurar consensos, antes os repelir, procurar fazer alianças apenas com as pessoas do mesmo grupo, concentra a sua acção na reivindicação de que as minorias estejam representadas no 1% que controla 90% dos recursos, e menos no facto de 1% controlar 90% dos recursos.