Sou nascido e criado em Mortágua. Um concelho que não fica nem a norte nem a sul, nem no litoral nem no interior. Distrito de Viseu e diocese de Coimbra. A primeira vila no percurso da Linha da Beiral Alta. Será talvez este o factor que permitiu que Mortágua se desenvolvesse, a dada altura, um pouco mais que os demais concelhos rurais do vale do Mondego.
Mortágua foi um dos poucos concelhos do país a dar a vitória a Humberto Delgado, o General sem medo, em 1958. Terra de tradição republicana, facilmente se afirmou como contra o regime de Salazar (esse que alguns tentam a todo o custo agora branquear).
Mas esse rubor, ainda que visível durante, como diria o Zeca, “esse período maravilhoso que foi o PREC, do sempre saudoso PREC” foi-se esbatendo e alaranjando como todo o resto do distrito. Durante os primeiros 24 anos da minha vida consciente (a partir dos 12) conheci tão só um presidente de Câmara em Mortágua, do PS é certo. Mas a verdade é que a esquerda, em eleições nacionais, só por lá ganhou 3 vezes: Soares vs Freitas, 2º mandato do Sócrates, 2º mandato do Costa. Antes desse quarto de século a cargo do PS tinha sido o PPD, durante 13 anos. Depois disso temos mais, já, 6 anos também do PPD.
Quando me comecei a formar politicamente as minhas referências eram poucas. A minha formação política fez-se em conversas com os mais velhos. Entre eles o sempre amigo Arturinho, nascido em 1933, a quem uma vez, madrugada dentro, de 24 para 25 Abril, sentados nas frias escadas da Carambola, perguntei: valeu a pena? O embargo na voz não lhe permitiu verbalizar a resposta, mas esta foi mais clara que qualquer palavra.
A dada altura, no FMI, o seu mais magnífico texto, o José Mário Branco pergunta-nos a mesma coisa. E responde: valeu pois.
A minha formação política fez-se também, e muito, a partir da música revolucionária. Numa terra em que as alternativas para a diversão nocturna tão necessária aos 20 anos eram necessário arriscar e ir para Viseu ou Coimbra, abriu, de nome Finalmente, um espaço em Mortágua que, apesar das rondas duma GNR sempre atenta aos incomensuráveis perigos do não respeito dos horários, se recusava a ter hora de fecho.
Nessas madrugadas longas ouvimos muitas vezes, um punhado, menos de um punhado de amigos, o FMI do José Mário Branco. Em silêncio.
O texto do José Mário Branco, que transcrevo abaixo é revisto pelo próprio (neste post do Daniel Oliveira). A actualidade, mesmo 40 anos depois, da leitura política que contém é assustadora. É a confirmação de que a história se repete. Primeiro como tragédia depois como farsa.
Longe vão os tempos em que a minha formação política se fazia em conversas e com músicas. Chego mesmo a olhar com alguma complacência a minha inocência de então. Mas, apesar disso, ou talvez por isso mesmo, viro-me muitas vezes para o FMI do José Mário Branco para me ajudar a entender esse ser político que é o Português.
Os “personagens” desta história estão já todos mortos. Incluindo o Finalmente e a Carambola. Só falamos dos mortos.
Hoje morreu o José Mário Branco,
Até amanhã, Camarada.
Publicado originalmente no BOM DIA, aqui.
FMI – José Mário Branco
Vou, vou-vos mostrar mais um pedaço da minha vida, um pedaço um pouco especial, trata-se de um texto que foi escrito, assim, de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 79, e que talvez tenha um ou outro pormenor que já não é muito actual. Eu vou-vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa altura, sem ter modificado nada, por isso vos peço que não se deixem distrair por esses pormenores que possam ser já não muito actuais e que isso não contribua para desviar a vossa atenção do que me parece ser o essencial neste texto.
Chama-se FMI.
Quer dizer: Fundo Monetário Internacional.
Não sei porque é que se riem, é uma organização democrática dos países todos, que se reúnem, como as pessoas, em torno de uma mesa para discutir os seus assuntos, e no fim tomar as decisões que interessam a todos…
É o internacionalismo monetário!
FMI
Cachucho não é coisa que me traga a mim
Mais novidade do que lagostim
Nariz que reconhece o cheiro do pilim
Distingue bem o Mortimore do Meirim
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Há tanto nesta terra que ainda está por fazer
Entrar por aí a dentro, analisar, e então
Do meu ‘attaché-case’ sai a solução!
FMI Não há graça que não faça o FMI
FMI O bombástico de plástico para si
FMI Não há força que retorça o FMI
Discreto e ordenado mas nem por isso fraco
Eis a imagem ‘on the rocks’ do cancro do tabaco
Enfio uma gravata em cada fato-macaco
E meto o pessoal todo no mesmo saco
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Não ando aqui a brincar, não há tempo a perder
Batendo o pé na casa, espanador na mão
É só desinfectar em superprodução!
FMI Não há truque que não lucre ao FMI
FMI O heróico paranóico harakiri
FMI Panegírico pró lírico daqui
Palavras, palavras, palavras e não só
Palavras para si, palavras para dó
A contas com o nada que swingar o sol-e-dó
Depois a criadagem lava o pé e limpa o pó
A produtividade, ora nem mais, celulazinhas cinzentas
Sempre atentas
E levas pela tromba se não te pões a pau
Um encontrão imediato do 3º grau!
FMI Não há lenha que detenha o FMI
FMI Não há ronha que envergonhe o FMI
FMI …
Entretem-te filho, entretem-te,
não desfolhes em vão este malmequer que
bem-te-quer, mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalte-quer-messe
gigantesca,
vem-te bem, bem te vim,
vim na cozinha, vim na casa-de-banho,
vim-me no Politeama, vim-me no Águia D’ouro, vim-me em toda a
parte,
vem-te filho, vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão,
olha os pombinhos pneumáticos como te arrulham por esses
cartazes fora,
olha a música no coração da Indira Gandhi,
olha o Moshe Dayan que te traz debaixo d’olho,
o respeitinho é muito lindo e nós somos um povo de respeito,
né filho?
nós somos um povo de respeitinho muito lindo,
saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à
rua de cravo na mão a horas certas, né filho?
Consolida filho, consolida,
enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela que o
malmequer vai-te tratando do serviço nacional de saúde.
Consolida filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo,
o teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos,
com’ò Astro, não é filho? O cabrão do astro entra-te pela
porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é?
Pois claro, ganhar forças, ganhar forças para consolidar,
para ver se a gente consegue num grande esforço nacional
estabilizar esta desestabilização filha-da-puta, não é filho?
Pois claro!
E estás aí a olhar para mim, estás aí a ver-me dar 33 voltinhas por minuto,
pagaste o teu bilhete,
pagaste o teu imposto de transacção
e estás a pensar lá com os teus zodíacos: “Este tipo
está-me a gozar, este gajo quem é que julga que é?” né filho?
Pois não é verdade que tu és um herói desde que nasceste?
A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu
grande safadote!
Meu Fernão Mendes Pinto de merda, né filho?
Onde está o teu Extremo Oriente, filho?
Aniki-bé-bé, aniki-bó-bó, tu és Sepúlveda, tu és Adamastor,
pois claro, tu sozinho consegues enrabar as Nações Unidas com
passaporte de coelho, não é filho? Mal eles sabem, pois é, tu sabes o que é
gozar a vida!
Entretem-te filho, entretem-te!
Deixa-te de políticas que a tua política é o trabalho,
trabalhinho, porreirinho da Silva,
e salve-se quem puder que a vida é curta e os santos não
ajudam quem anda para aqui a encher pneus com este paleio de sanzala em ritmo
de pop-chula, não é filho?
A-one, a-two, a-one-two-three
FMI dida didadi dadi dadi da didi
FMI …
Camòniú sanòvabiche! Camóne beibi a ver se me comes!
Camóne Luís Vaz, amanda-lhe co’os decassílabos que eles já vão
saber o que é meterem-se com uma nação de poetas!
E zás! enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares,
zás! enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro de Cunhal,
zás! enfio-te a Natalia Correia no Sá Carneiro,
zás! enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros,
zás! enfio-te o Pedro Homem de Melo no Parque Mayer
e acabamos todos numa sardinhada ao integralismo Lusitano, a
estender o braço, meio Rolão Preto, meio Steve McQueen,
ok boss, tudo ok, estamos numa porreira meu,
um tripe fenomenal, proibido voltar atrás, viva a liberdade,
né filho?
Pois, irreversível, pois claro, irreversívelzinho,
pluralismo a dar com um pau,
nada será como dantes, agora todos se chateiam de outra
maneira, né filho?
Olha que porra, deixa lá correr o marfil, homem, andas numa
alta, pá,
é assim mesmo, cada um a curtir a sua, podia ser tão
porreiro, não é?
Preocupações, crises políticas pá?
A culpa é dos partidos pá!
Esta merda dos partidos é que divide a malta pá,
pois pá, é só paleio pá, o pessoal não quer é trabalhar pá!
Razão tem o Jaime Neves pá!
(Olha deixaste cair as chaves do carro!)
Pois pá!
(Que é essa orelha de preto que tens no porta-chaves?)
É pá, deixa-te disso, não desestabilizes pá!
Eh, faz favor, mais uma bica e um pastel de nata.
Uma porra pá, um autêntico desastre o 25 de Abril,
esta confusão pá,
a malta estava sossegadinha, a bica a 15 tostões, a gasosa a
sete e coroa…
Tá bem, essa merda da pide pá, Tarrafais e o carago,
mas no fim de contas quem é que não colaborava, ah?
Quantos bufos é que não havia nesta merda deste país, ah?
Quem é que não se calava, quem é que arriscava coiro e
cabelo, assim mesmo, o que se chama arriscar, ah?
Meia dúzia de líricos, pá,
meia dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o
estrangeiro, pá,
isto é tudo a mesma carneirada!
Oh sr. guarda venha cá – á,
venha ver o que isto é – é,
o barulho que vai aqui – i,
o neto a bater na avó – ó,
deu-lhe um pontapé no cu, né filho?
Tu vais conversando, conversando,
que ao menos agora pode-se falar…
…ou já não se pode?
Ou já começaste a fazer a tua revisãozinha constitucional
tamanho familiar, ah?
Estás desiludido com as promessas de Abril, né?
As conquistas de Abril!
Eram só paleio a partir do momento que tas começaram a tirar
e tu ficaste quietinho, né filho?
E tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na areia,
“não é nada comigo, não é nada comigo”, né?
E os da frente que se lixem…
E é por isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não
querer ver, é não querer entender nada,
precisas de paz de consciência,
não andas aqui a brincar, né filho?
Precisas de ter razão,
precisas de atirar as culpas para cima de alguém
e atiras as culpas para os da frente,
para os do 25 de Abril,
para os do 28 de Setembro,
para os do 11 de Março,
para os do 25 de Novembro, para os do…
… que dia é hoje, hã?
FMI Dida didadi dadi dadi da didi
FMI …
Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é
filho?
“Todos temos culpas no cartório”, foi isso que te
ensinaram, não é verdade?
Esta merda não anda porque a malta, pá, a malta não quer que
esta merda ande. Tenho dito.
A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém, não é isto
verdade?
Quer-se dizer, há culpa de todos em geral e não há culpa de
ninguém em particular!
Somos todos muita bons no fundo, né?
Somos todos uma nação de pecadores e de vendidos, né?
Somos todos, ou anti-comunistas ou anti-fascistas,
estas coisas até já nem querem dizer nada, ismos para aqui,
ismos para acolá,
as palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole
e o Zé é que se lixa,
cá o pintas é sempre mexilhão…
Eu quero lá saber deste paleio vou mas é ao futebol, pronto,
viva o Porto, viva o Benfica,
Lourosa! Lourosa!
Marrazes! Marrazes!
Fora o arbitro! gatuno! Qual gatuno, qual caralho!
Razão tinha o Tonico Bastos para se entreter, né filho?
Entretem-te, filho, com as tuas viúvas e as tuas órfãs
que o teu delegado sindical vai tratando da saúde aos
administradores,
entretem-te, que o ministro do trabalho trata da saúde aos
delegados sindicais,
entretem-te, filho, que a oposição parlamentar trata da saúde
ao ministro do trabalho,
entretem-te, que o Eanes trata da saúde à oposição
parlamentar,
entretem-te, que o FMI trata da saúde ao Eanes,
entretém-te, filho,
e vai para a cama descansado
que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste
mesmo instante,
enquanto tu adormeces a não pensar em nada,
milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos
com computadores, redes de policia secreta, telefones, carros
de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá!
Podes estar descansado que o Teng Hsiao-Ping está a tratar da
tua vida com o Jimmy Carter,
o Brejnev está a tratar de ti com o João Paulo II,
tudo corre bem,
a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu
vais produzir amanhã nas tuas oito horas.
A ver quem vai ser capaz de convencer de que a culpa é tua e
só tua se o teu salário perde valor todos os dias,
ou de te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de
compra é como o rio de S. Pedro de Muel
que se some nas areias em plena praia, ali a 10 metros do mar
em maré cheia e nunca consegue desaguar de maneira que se possa dizer: porra,
finalmente o rio desaguou!
Vão-te convencer de que a culpa é tua e tu sem culpa nenhuma, estás tu a
ver? Que tens tu a ver com isso, não é filho?
Cada um que se vá safando como puder, é mesmo assim, não é?
Tu fazes como os outros, fazes o que tens a fazer:
– votas à esquerda moderada nas sindicais,
– votas no centro moderado nas deputais,
– e votas na direita moderada nas presidenciais!
Que mais querem eles? que lhes ofereças a Europa no natal?!
Era o que faltava!
É assim mesmo, julgam que te levam de mercedes?
toma, para safado, safado e meio, né filho? nem para a frente
nem para trás!
e eles que tratem do resto, os gatunos, que são pagos para
isso, né?
Claro! Que se lixem as alternativas, para trabalho já me
chega.
Entretem-te meu anjinho, entretem-te,
que eles são inteligentes,
eles ajudam,
eles emprestam,
eles decidem por ti,
decidem tudo por ti:
– se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de
alfinete para a Suécia,
– se hás-de plantar tomate para o Canada ou eucaliptos para o
Japão,
descansa que eles tratam disso,
– se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou se hás-de
beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo!
Descansa, não penses em mais nada,
que até neste país de pelintras se acha normal haver mãos
desempregadas e se acha inevitável haver terras por cultivar!
Descontrai baby, come on descontrai,
afinfa-lhe o Bruce Lee, afinfa-lhe a macrobiótica, o
biorritmo, o horoscópio, dois ou três ovniologistas, um gigante da ilha de
Páscoa
e uma Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas
festas às criancinhas!
Piramiza filho, piramiza,
antes que os chatos fujam todos para o Egipto,
que assim é que tu te fazes um homenzinho
e até já pagas multa se não fores ao recenseamento.
Pois pá, isto é um país de analfabetos, pá!
Dá-lhe no Travolta,
dá-lhe no discossáunde,
dá-lhe no pop-chula,
pop-chula pop-chula,
yeah yeah, jo-ta-pi-men-ta-for-e-ver!
Quanto menos souberes a quantas andas melhor para ti!
Não te chega para o bife? – antes no talho do que na farmácia!
Não te chega para a farmácia? – antes na farmácia do que no
tribunal!
Não te chega para o tribunal? – antes a multa do que a morte!
Não te chega para o cangalheiro? – antes para a cova do que
para não sei quem que há-de vir,
cabrões de vindouros!
Hã? Sempre a merda do futuro!
E eu que me quilhe!
Pois, pá!
Sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu hã?
Que é que eu ando aqui a fazer?
Digam lá! e eu? José Mário Branco, 37 anos,
isto é que é uma porra!
anda aqui um gajo cheio de boas intenções,
a pregar aos peixinhos,
a arriscar o pêlo,
e depois?
É só porrada e mal-viver, é?
“O menino é mal criado”, “o menino é
pequeno-burguês”, “o menino pertence a uma classe sem futuro
histórico”…
Eu sou parvo ou quê?
Quero ser feliz, porra,
quero ser feliz agora,
que se foda o futuro,
que se foda o progresso,
mais vale só do que mal acompanhado!
Vá: mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos!
Deixem-me em paz, porra,
deixem-me em paz e sossego,
não me emprenhem mais pelos ouvidos, caralho,
não há paciência, não há paciência,
deixem-me em paz caralho,
saiam daqui,
deixem-me sozinho só um minuto,
vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e
policias e generais para o raio que vos parta!
Deixem-me sozinho, filhos da puta,
deixem só um bocadinho,
deixem-me só para sempre,
tratem da vossa vida que eu trato da minha, pronto, já chega,
sossego porra, silêncio porra,
deixem-me só, deixem-me só, deixem-me só,
deixem-me morrer descansado.
Eu quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado,
eu quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto,
eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro e o Melo
Antunes e a rainha de Inglaterra e o Santiago Carrilho e a Vera Lagoa,
deixem-me só porra!
rua!
larguem-me!
desòpila o fígado,
arreda!
t’arrenego Satanás!
filhos da puta!
Eu quero morrer sozinho ouviram?
Eu quero morrer,
eu quero que se foda o FMI,
eu quero lá saber do FMI,
eu quero que o FMI se foda,
eu quero lá saber que o FMI me foda a mim,
eu vou mas é votar no Pinheiro de Azevedo se ele tornar a ir
para o hospital, pronto, bardamerda o FMI,
o FMI é só um pretexto vosso seus cabrões,
o FMI não existe,
o FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma,
o FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio,
rua!
desandem daqui para fora!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe…
(…)
Mãe, eu quero ficar sozinho…
Mãe, não quero pensar mais…
Mãe, eu quero morrer mãe.
Eu quero desnascer,
ir-me embora, sem sequer ter de me ir embora.
Mãe, por favor!
Tudo menos a casa em vez de mim,
útero maldito que não sou senão este tempo que decorre entre
fugir de me encontrar e me encontrar fugindo…
de quê mãe?
Diz, são coisas que se me perguntem?
Não pode haver razão para tanto sofrimento.
E se inventássemos o mar de volta?
E se inventássemos partir, para regressar?
Partir, e aí, nessa viajem, ressuscitar da morte às arrecuas
que me deste.
Partida para ganhar,
partida de acordar, abrir os olhos,
numa ânsia colectiva de tudo fecundar,
terra, mar, mãe…
Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto,
lembrar – nota a nota – o canto das sereias,
lembrar o “depois do adeus”,
e o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal,
lembrar cada lágrima,
cada abraço,
cada morte,
cada traição,
partir aqui,
com a ciência toda do passado,
partir, aqui, para ficar…
Assim mesmo,
como entrevi um dia,
a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila,
o azul dos operários da Lisnave a desfilar,
gritando ódio apenas ao vazio,
exército de amor e capacetes.
Assim mesmo, na Praça de Londres, o soldado lhes falou:
– Olá camaradas, somos trabalhadores, e eles não conseguiram
fazer-nos esquecer; aqui está a minha arma para vos servir.
Assim mesmo,
por trás das colinas onde o verde está à espera,
se levantam antiquíssimos rumores,
as festas e os suores,
os bombos de Lavacolhos,
assim mesmo senti um dia,
a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila,
o bater inexorável dos corações produtores, os tambores.
– De quem é o carvalhal?
– É nosso!
Assim te quero cantar, mar antigo a que regresso.
Neste cais está arrimado o barco-sonho em que voltei.
Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, Grandola Vila
Morena.
Diz lá: valeu a pena a travessia? Valeu pois.
Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe.
No fundo deste mar, encontrareis tesouros recuperados, de mim
que estou a chegar do lado de lá para ir convosco.
Tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos,
o meu canto e a palavra.
O meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos
antepassados que ainda não nasceram.
A minha arte é estar aqui convosco
e ser-vos alimento e companhia
na viagem para estar aqui
de vez.
Sou português,
pequeno-burguês de origem,
filho de professores primários,
artista de variedades,
compositor popular,
aprendiz de feiticeiro.
Faltam-me dentes.
Sou o Zé Mário Branco,
37 anos, do Porto,
muito mais vivo que morto.
Contai com isto de mim
para cantar e para o resto.