O Assento da Misericórdia

O Assento da Misericórdia

Ninguém se terá debruçado tanto sobre a questão do pecado e da redenção como o cantor australiano Nick Cave. O seu trabalho é pleno da dualidade a que nos sujeita a escravidão da moral humana. Preso entre o desejo involuntário e inconsciente, quase inocente, do pecado e o castigo de Deus imposto àqueles que as suas leis desafiam. O arrependimento surge-lhe, sempre, como forma de lavar os seus pecados, que, no entanto, continua a cometer com a luxuria e no nível selvático que a um pecado se impõem: pecado, arrependimento, absolvição e recaída. Expoente máximo deste conflito de alma é a sua música Mercy Seat, ou, em tradução bíblica, Propiciatório.

«Efectivamente, construiu-se um tabernáculo com duas partes. A primeira chamava-se o lugar santo. Era lá que estavam o candelabro e a mesa com os pães consagrados a Deus.»

Na sua primeira longa-metragem, o realizador Sueco Magnus von Horn, coloca-nos face um jovem saído do reformatório. A princípio as razões do seu internamento são desconhecidas. O que se conhece é o mistério em que se envolve tão hediondo acto que John cometeu no passado.

«Atrás da segunda cortina estava a segunda parte do tabernáculo chamada o lugar santíssimo.»

Regressado à sua vila natal, John deve enfrentar o ostracismo e o escárnio de toda uma sociedade que o viu crescer. Que o viu crescer, e selvaticamente pecar. Foi readmitido na sua escola de sempre, dois anos após pecar, dois anos em que expiou os seus pecados perante a justiça dos homens.

«Era ali que se encontravam o altar de ouro para queimar o incenso e uma arca de madeira, toda coberta de ouro, chamada arca da aliança.»

Regressado, John teria agora que enfrentar os seus pares, aqueles de quem se apartou pelo seu pecado. Aos poucos, o véu de pureza que cobre o verdadeiro rosto desta comunidade vai caindo e os demais personagens vão-se revelando sem a menor capacidade nem vontade para reintegrar o anjo agora caído, chegando, no seu acto punitivo, a cometer maiores pecados aquele do pecador.

«Nessa arca estavam o vaso de ouro com o maná, a vara de Aarão que Deus tinha feito florir e as duas placas de pedra em que estavam escritas as palavras da aliança.»

A ânsia em que condenar e torturar o que nos é diferente é fortemente mobilizada pelo medo do desconhecido. Exemplo disso, por exemplo, foi a rapidez com que encontrámos nos refugiados recentemente chegados os culpados para um conjunto de agressões sexuais que ocorreram em Colónia durante as celebrações. Hoje sabemos que não foram os atacantes não era os recém-chegados refugiados e nem o objectivo era a agressão sexual mas antes simples e ordinária tentativa de furto.

«Por cima da arca estavam querubins que representavam a glória de Deus e cobriam com a sua sombra o Propiciatório».

A voracidade com que nos tornamos carrascos é visível, por exemplo, nos comentários que no dia-a-dia podemos ver nas redes sociais: perfeitos alambiques de ódio. Dentro da Arca estão as tábuas das leis pelas quais se devem reger os homens. O peso da Arca, junto com as leis que encerra, só pode ser suplantado pelo peso da própria tampa. Nessa tampa, o Assento da Misericórdia, seriam oferecidos os sacrifícios que dariam lugar à redenção dos pecados cometidos.

Carregada em ombros pelos Sacerdotes do Templo, a Arca era exibida como portadora da lei de Deus sem que ninguém mais a abrisse para lhe ver o conteúdo.


Este texto foi originalmente publicado no BOM DIA, aqui.